7.1. Existência e unicidade de soluções

Vamos considerar, nesse capítulo, equações diferenciais aleatórias da forma

\[ \frac{\mathrm{d}X_t}{\mathrm{d}t} = f(t, X_t, Y_t), \quad 0 \leq t \leq T, \]

onde \(T > 0\), \(\{Y_t\}_{t\in [0, T]}\) é um processo real com caminhos amostrais contínuos e \(f:[0, T]\times \mathbb{R} \times\mathbb{R} \rightarrow \mathbb{R}\) é contínuo.

Junte-se à essa equação uma condição inicial

\[ \left.X_t\right|_{t = 0} = X_0, \]

onde \(X_0\) é uma variável aleatória real.

Sob essas condições, podemos considerar soluções por caminho da equação diferencial aleatória. Essas condições são suficientes para os nossos objetivos, no momento, mas podem ser relaxadas.

Definição de solução por caminhos

Uma solução por caminhos (ou pathwise solution) da equação diferencial aleatória acima é um processo aleatório real \(\{X_t\}_{t\in [0, T]}\) tal que quase todo caminho amostral \(t\mapsto X_t(\omega)\) é continuamente diferenciável e satisfaz a equação diferencial ordinária

\[ \frac{\mathrm{d} X_t(\omega)}{\mathrm{d} t} = f(t, X_t(\omega), Y_t(\omega)), \qquad 0 \leq t \leq T. \]

No caso do problema de valor inicial, pedimos, ainda, que

\[ \left.X_0\right|_{t = 0}(\omega) = X_0(\omega), \]

quase certamente.

Existência de solução

No caso de uma equação diferencial ordinária \(x' = f(t, x, \lambda)\), sabemos que se \(f\) for contínua na vizinhança de um ponto \((t_0, x_0, \lambda)\), então existe pelo menos uma solução local do problema de valor inicial \(x(t_0) = x_0\).

No caso da equação diferencial aleatória, precisamos resolver isso para cada amostra \(\omega\), ou seja, precisaríamos de soluções locais para cada \(x' = f(t, x, Y_t(\omega))\), com condição inicial \(x(0) = X_0(\omega)\). O problema é que o Teorema de Peano nos dá, para cada \(\omega\), uma solução local \(x = x(t, \omega)\) em um intervalo \((-\delta(\omega), \delta(\omega))\), com \(\delta(\omega) > 0\). E não temos, em princípio, como controlar \(\delta(\omega)\) para que fique, sempre, estritamente maior do que zero, de modo a nos garantir um intervalo mínimo no qual a equação pode ser resolvida para todo \(\omega\). Mesmo que isso possa ser feito, não temos, sob essa hipótese (de mera continuidade da \(f\)), que a função \(\omega \mapsto x(t, \omega)\) esteja bem definida e seja contínua. Desse jeito, não temos como garantir que \(\omega \mapsto X_t(\omega) = x(t, \omega)\) seja mensurável e, portanto, seja uma variável aleatória.

Continuando a pensar na teoria de equações diferenciais ordinárias, se assumirmos um pouco mais, que \(f\) seja localmente Lipschitz contínua na variável \(x\), então \(\omega \mapsto X_t(\omega) = x(t, \omega)\) está bem definido e é contínuo, pelo menos para os valores \(\omega\) em que a solução está definida até o instante \(t\). Mas, novamente, não temos como garantir, em geral, que a soluções existem num intervalo de tempo mínimo. Ou seja, \(\delta(\omega) > 0\) pode não estar limitado inferiormente por um valor estritamente positivo.

Uma solução é pedir que a função \(f=f(t, x, y)\) seja globalmente Lipscthiz na variável \(x\), i.e. que exista \(L > 0\) tal que

\[ |f(t, x_1, y) - f(t, x_2, y)| \leq L |x_1 - x_2|, \qquad \forall t, x_1, x_2, y. \]

Nesse caso, \(\delta(\omega) = \infty\), para todo \(\omega\in \Omega\), e a função-solução \(\omega \mapsto x(t, \omega)\) do problema de valor inicial. Assim, o processo \(\{X_t\}_{t\geq 0}\) definido por \(X_t(\omega) = x(t, \omega)\) é um processo com caminhos continuamente diferenciáveis e que é uma solução por caminhos da equação diferencial aleatória.

Outra solução é exigir apenas que \(f=f(t, x, y)\) seja localmente Lipschitz em \(x\) mas que tenha alguma estrutura adicional que nos permita garantir a existência de solução por um tempo mínimo comum a todos os valores amostrais \(\omega\in\Omega\).

Veremos exemplos na seção seguinte.

Unicidade

A unicidade de soluções por caminho de equações diferenciais aleatórias segue diretamente do resultado para equações diferenciais ordinárias clássicas.

Sob a condição de \(f = f(t, x, y)\) ser contínua nas variáveis \((t, x, y)\), em um domínio \([0, T] \times \mathbb{R}\times \mathbb{R}\) e localmente Lipschhitz na variável \(x\) e com \(\{Y_t\}_{t\in [0, T]}\) com caminhos amostrais contínuos, a solução por caminhos, quando existe, é única em um sentido quase sempre, i.e. se \(\{X_t\}_{t \geq 0}\) e \(\{\tilde X_t\}_{t \geq 0}\) são soluções por caminho, então

\[ \mathbb{P}\left(\{X_t = \tilde X_t\}_t\right) = \mathbb{P}\left(\left\{\omega \in \Omega; \;X_t(\omega) = \tilde X_t(\omega), \;\forall t\in [0, T]\right\}\right) = 1. \]

Aqui, a continuidade Lipschitz local significa que, para cada \(R > 0\), existe \(L_R > 0\) tal que

\[ |f(t, x_1, y) - f(t, x_2, y)| \leq L_R|x_1 - x_2|, \qquad \forall t\in [0, T], \;\forall x_1, x_2, y \in [-R, R]. \]

De fato, suponha que, para quase todo \(\omega\), temos

\[ \frac{\mathrm{d} X_t(\omega)}{\mathrm{d} t} = f(t, X_t(\omega), Y_t(\omega)), \qquad 0 \leq t \leq T. \]

e

\[ \frac{\mathrm{d} \tilde X_t(\omega)}{\mathrm{d} t} = f(t, \tilde X_t(\omega), Y_t(\omega)), \qquad 0 \leq t \leq T. \]

com

\[ \left.X_0\right|_{t = 0}(\omega) = \left.\tilde X_0\right|_{t = 0}(\omega). \]

Como \(t \mapsto X_t(\omega)\) e \(t \mapsto \tilde X_t\) satisfazem a mesma equação diferencial ordinária, com a mesma condição inicial, e \(f\) é localmente Lipschitz contínuo na variável \(x\) e o caminho \(t\mapsto Y_t(\omega)\) é contínuo, então a solução é contínua e limitada e, portanto, é única, ou seja \(X_t(\omega) = \tilde X_t(\omega)\) em \(t\in [0, T]\). Como isso vale quase certamente em \(\omega\), então a unicidade vale nesse sentido.

Ressaltamos, aqui, que utilizamos, anteriormente, a continuidade Lipschitz global para garantir a existência, mas apenas a continuidade Lipschitz local é necessária, aqui, para garantir a unicidade, desde que seja possível mostrar a existência de alguma outra forma, explorando outras estruturas do termo \(f\).

Outros tipos de solução

Outros tipos de solução podem ser obtidas relaxando o sentido de convergência do limite

\[ \frac{\mathrm{d}X_t}{\mathrm{d}t} = \lim_{\tau \rightarrow 0} \frac{X_{t+\tau} - X_t}{\tau}. \]

No caso acima, de soluções por caminhos, o limite vale quase certamente, i.e.

\[ \mathbb{P}\left(\exists \frac{\mathrm{d}X_t}{\mathrm{d}t} = \lim_{\tau \rightarrow 0} \frac{X_{t+\tau} - X_t}{\tau} = f(t, X_t, Y_t) \right) = 1. \]

Mas, em princípio, a noção de derivada de um processo pode ser relaxada para convergência em probabilidade, convergência em distribuição, convergência em média-quadrática, convergência em média \(p\geq 1\), etc. A dificuldade é obtermos condições em \(f\) e em \(Y_t\), mais fracas, que garantam a existência de soluções da equação diferencial aleatória nesse sentido (também) mais fraco que convergência quase certamente.

Uma sentido bastante utilizado é o de solução no sentido de média quadrática, em que existe um processo \(\{\mathrm{d}X_t/\mathrm{d}t\}_{t \in [0, T)}\) tal que

\[ \mathbb{E}\left( \left| \frac{X_{t+\tau} - X_t}{\tau} - \frac{\mathrm{d}X_t}{\mathrm{d}t}\right|\right) \rightarrow 0, \quad \tau \rightarrow 0. \]

No entanto, não exploraremos esse caminho aqui.



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