2.7. Variáveis aleatórias multivariadas

As coisas começam a ficar mais interessantes quando consideramos mais de uma variável aleatória. Para que elas sejam consideradas juntas, é necessário que estejam definidas em um mesmo espaço de probabilidades. Isso aparece de forma natural, como veremos aqui.

Variáveis aleatórias multivariadas

Uma maneira de pensar uma coleção de variáveis aleatórias é como um vetor \(X = (X_1, \ldots, X_n)\) (muitas vezes se considera um vetor coluna, na verdade) cujos elementos estão em um mesmo espaço de probabilidades, digamos \((\Omega, \mathcal{A}, \mathbb{P})\). Os espaços de eventos podem ser diferentes, de forma que \(\Sigma = \Sigma_1 \times \cdots \times \Sigma_n\), com a \(\sigma\)-algebra \(\mathcal{E}\) gerada por \(\mathcal{E}_1 \times \cdots \times \mathcal{E}_n\). Tal objeto é chamado de variável aleatória multivariada. E a probabilidade \(\mathbb{P}\) é chamada de distribuição conjunta de probabilidades.

A partir da probabilidade conjunta, podemos obter as chances de certas combinações de eventos \(E \in \mathcal{E}\) acontecerem:

\[ \mathbb{P}(X \in E). \]

Quando o evento conjunto é da forma \(E = E_1 \times \ldots \times E_n\), podemos escrever

\[ \mathbb{P}(X_1 \in E_1, \ldots, X_n \in E_n) \]

Também podemos extrair a probabilidade de realização de um evento para apenas uma das variáveis, que é chamada de marginal.

\[ \mathbb{P}(X_i \in E_i). \]

Isso pode ser obtido da distribuição conjunta, considerando o evento \(\mathbb{E} = \Sigma_1 \times \ldots \Sigma_{i-1}\times E_i \times \Sigma_{i+1} \times \cdot \times \Sigma_n\).

Exemplo

Por exemplo, considere um dado de quatro lados e um de seis. Ambos dados não viciados. Há \(4 \times 6 = 24\) combinações possíveis. O espaço amostral \(\Omega\) deverá ter (pelo menos) 24 elementos, cada combinação com uma determinada probabilidade.

Podemos representar os resultado dos dados através de duas variáveis aleatórias, digamos \(X\) e \(Y\), com \(X\) para o resultado do lançamento do dado de quatro lados e \(Y\), para o de seis. Isoladamente, teríamos um espaço amostral de quatro elementos para \(X\) e um de seis para \(Y\). Mas em conjunto, temos uma variável multivariada \((X, Y)\) em um espaço amostral de 24 elementos. Mais explicitamente, podemos considerar

\[ \Omega = \Sigma = \{1, \ldots, 4\} \times \{1, \ldots, 6\}. \]

A probabilidade conjunta \(\mathbb{P}\) é o que define a variável multivariada nos dando as probabilidades das realizações de cada combinação:

\[ \mathbb{P}(X = i, Y = j) = \frac{1}{24}, \qquad i = 1, \ldots, 4, \;j = 1, \ldots, 6. \]

A partir daí, podemos tirar as marginais:

\[ \mathbb{P}(X = i) = \frac{1}{4}, \quad i = 1, \ldots, 4, \qquad \mathbb{P}(Y = j) = \frac{1}{6}, \quad j = 1, \ldots, 6. \]

As marginais podem ser obtidas com a lei da probabilidade total, por exemplo,

\[ \mathbb{P}(X = i) = \sum_{j = 1}^6 \mathbb{P}(X = i, Y = j) = \sum_{j = 1}^6 \frac{1}{24} = \frac{6}{24} = \frac{1}{4}. \]

Independência

Duas variáveis aleatórias \(X\) e \(Y\) gerando uma variável aleatória multivariada \((X, Y)\) em um espaço \((\Omega, \mathcal{A}, \mathbb{P})\) são ditas independentes quando a probabilidade conjunta é o produto das marginais:

\[ \mathbb{P}(X \in E_1, Y \in E_2) = \mathbb{P}(X \in E_1)\mathbb{P}(X \in E_2). \]

No caso de uma variável multivariada \((X_1, \ldots, X_n)\), dizemos que as variáveis \(X_i\) são (mutuamente) independentes quando

\[ \mathbb{P}(X_1 \in E_1, \ldots, X_n \in E_n) = \mathbb{P}(X_1 \in E_1)\cdots \mathbb{P}(X_n \in E_n). \]

Analogamente no caso de uma coleção infinita \(\{X_k\}_k\) (enumerável ou não) de variáveis aleatórias em um mesmo espaço.

Essa propriedade pode ser usada diretamente na construção de variáveis multivariadas independentes!

Independência dois a dois

Dizemos que variáveis aleatórias \(X_1, \ldots, X_n\) definindo uma variável multivariada \((X_1, \ldots, X_n)\) são independentes duas a duas quando qualquer par \((X_i, X_j)\) é independente, i.e.

\[ \mathbb{P}(X_i \in E_i, X_j \in E_j) = \mathbb{P}(X_i \in E_i)\mathbb{P}(X_j \in E_j), \qquad \forall i \neq j. \]

Observe que podemos ter um conjunto com mais de duas variáveis aleatórias cujas variáveis sejam independentes dois a dois, mas não mutuamente. De fato, considere três variáveis aleatórias \(X\), \(Y\) e \(Z\), onde \(X\) e \(Y\) são variáveis de Bernoulli independentes, com probabilidade de sucesso \(p = 1/2\), e defina \(Z\) como sendo \(1\), caso os resultados de \(X\) e \(Y\) sejam diferentes, e \(0\), caso os resultados sejam iguais. Podemos escrever isso como \(Z = X + Y \mod 2\), com \(X\) e \(Y\) assumindo valores \(0\) ou \(1\). Podemos pensar nisso como um checksum simples, ou um dígito verificador.

Nesse caso, \(X\) e \(Y\) são independentes, \(X\) e \(Z\) são independentes e \(Y\) e \(Z\) são independentes. Mas \(X, Y\) e \(Z\) não são mutuamente independentes, já que \(Z\) está completamente determinado pelos resultados de \(X\) e \(Y\).

Podemos mostrar isso mais explicitamente, através da distribuição conjunta de probabilidade, até mesmo para solidificar as ideias acima. A tabela abaixo nos dá a distribuição conjunta de probabilidades:

XYZProbabilidade
0001/4
1011/4
0101/4
1111/4

O espaço amostral pode ser tomado como sendo \(\Omega = \{0, 1\}^3\). Acima, só mostramos as combinações com probabilidade positiva. Mas podemos completar o quadro:

XYZProbabilidade
0001/4
0010
1000
1011/4
0100
0111/4
1101/4
1110

Observe que

\[ \mathbb{P}(X = 0) = \mathbb{P}(Y = 0) = \mathbb{P}(Z = 0) = \frac{1}{4} + \frac{1}{4} = \frac{1}{2} \]

No entanto,

\[ \mathbb{P}(X = 0, Y = 0, Z = 0) = 0 \neq \mathbb{P}(X = 0)\mathbb{P}(Y = 0)\mathbb{P}(Z = 0). \]

Da mesma forma, pode-se verificar que as variáveis são independentes duas a duas.

Desigualdade maximal de Kolmogorov

Como uma aplicação interessante, considere \(n\) variáveis aleatórias independentes \(X_1, \ldots, X_n\) com \(\mathbb{E}[X_k] = 0,\) \(k = 1, \ldots, n,\) e defina

\[ S_k = \sum_{j=1}^k X_j, \]

com \(S_0 = 0.\) Estamos interessados em estimar

\[ \mathbb{P}\left(\max_{1\leq k \leq n} \{S_k\} \geq r\right), \]

para \(r \geq 0\) arbitrário. Para isso, usamos a decomposição

\[ \left\{\max_{1\leq k \leq n} \{S_k\} \geq r\right\} = \left\{S_1 \geq r\right\} \bigcup \left\{S_1 < r, S_2 \geq r\right\} \bigcup \cdots \bigcup \left\{S_1 < r, \ldots S_{n-1} < r, S_n \geq r\right\}. \]

Denotamos

\[ A_k = \left\{S_1 < r, \ldots S_{k-1} < r, S_k \geq r \right\}. \]

Como as uniões são disjuntas,

\[ \mathbb{P}\left(\max_{1\leq k \leq n} \{S_k\} \geq r\right) = \mathbb{P}\left(A_1\right) + \mathbb{P}\left(A_2\right) + \cdots + \mathbb{P}\left(A_n\right) \]

Usando a desigualdade de Chebyshev,

\[ \mathbb{P}\left(A_k\right) = \mathbb{E}[\chi_{A_k}] \leq \frac{1}{r^2}\mathbb{E}[S_k^2 \chi_{A_k}] \leq \frac{1}{r^2} \mathbb{E}[(S_k^2 + (S_n - S_k)^2) \chi_{A_k}]. \]

Como as variáveis \(X_k,\) \(k=1, \ldots, n,\) são independentes, temos que

\[ S_k=\sum_{1\leq j \leq k} X_j \qquad \textrm{e} \qquad S_n - S_k = \sum_{k < j \leq n} X_j \]

são independentes entre si. Além disso, \(\chi_{A_k}\) só envolve os processos \(X_1, \ldots, X_k,\) sendo também independente de \(S_n - S_k\). Desse modo,

\[ \mathrm{Cov}\left(S_k\chi_{A_k}, S_n - S_k\right) = 0 \]

e

\[ \mathbb{E}[S_k\chi_{A_k}(S_n - S_k)] = \mathrm{Cov}\left(S_k\chi_{A_k}, S_n - S_k\right) + \mathbb{E}\left[S_k\chi_{A_k}\right]\mathbb{E}\left[S_n - S_k\right] = \mathbb{E}\left[S_k\chi_{A_k}\right]\mathbb{E}\left[S_n - S_k\right]. \]

Observe que \(S_k \geq r\) em \(A_k\), logo

\[ \mathbb{E}\left[S_k\chi_{A_k}\right] \geq r, \]

mas

\[ \mathbb{E}\left[S_n - S_k\right] = 0, \]

de maneira que

\[ \mathbb{E}[S_k\chi_{A_k}(S_n - S_k)] = 0. \]

Assim, podemos completar os quadrados e escrever

\[ \begin{align*} \mathbb{E}[(S_k^2 + (S_n - S_k)^2) \chi_{A_k}] & = \mathbb{E}[(S_k^2 + 2S_k(S_n - S_k) + (S_n - S_k)^2)\chi_{A_k}] \\ & = \mathbb{E}[(S_k + (S_n - S_k))^2\chi_{A_k}] \\ & = \mathbb{E}[S_n^2\chi_{A_k}]. \end{align*} \]

Desta forma,

\[ \mathbb{P}\left(\max_{1\leq k \leq n} \{S_k\} \geq r\right) \leq \frac{1}{r^2}\left( \mathbb{E}[S_n^2\chi_{A_1}] + \cdots + \mathbb{E}[S_n^2\chi_{A_n}]\right) = \frac{1}{r^2}\mathbb{E}[S_n^2\left(\chi_{A_1} + \cdots + \chi_{A_n}\right)]. \]

Como os conjuntos \(A_1, \ldots, A_n\) são disjuntos, temos

\[ \chi_{A_1} + \ldots + \chi_{A_n} = \chi_{A_1 \cup \cdots \cup A_n} \leq 1, \]

de modo que

\[ \mathbb{E}[S_n^2\chi_{A_1 \cup \ldots \cup A_n}] \leq \mathbb{E}[S_n^2]. \]

Como \(S_n\) também tem valor esperado nulo, o lado direito é igual à variância de \(S_n\), nos levando à desigualdade final, conhecida como desigualdade de Kolmogorov:

\[ \mathbb{P}\left(\max_{1\leq k \leq n} \{S_k\} \geq r\right) \leq \frac{1}{r^2}\mathrm{Var}\left(S_n^2\right), \]

para \(r > 0\) arbitrário.

Exercícios

  1. Considere um vetor aleatório \((X_1, \ldots, X_n)\) como na desigualdade maximal de Kolmogorov, com variáveis independentes e assuma, mais geralmente, que, para um dado \(m\in\mathbb{N},\) os momentos são finitos, i.e. \(\mathbb{E}[X_k^{m}] < \infty,\) \(k=1, \ldots, n,\) e que cada \(X_k\) é simétrico em relação à origem, ou seja, \(X_k\) e \(-X_k\) tem a mesma distribuição. Modifique a demonstração acima da desigualdade maximal de Kolmogorov para obter que

\[ \mathbb{P}\left(\max_{1\leq k \leq n} \{S_k\} \geq r\right) \leq \frac{1}{r^{m}}\mathbb{E}\left[S_n^{m}\right], \]

para todo \(r > 0\) e todo inteiro \(m\in\mathbb{N}.\)

Dicas:

(i) Substitua a desigualdade de Chebyshev por \( \mathbb{P}\left(A_k\right) = \mathbb{E}[\chi_{A_k}] \leq \frac{1}{r^{m}}\mathbb{E}[S_k^{m} \chi_{A_k}]. \)

(ii) Escreva \( S_n^{m} = (S_k + (S_n - S_k))^{m} = \sum_{i=0}^{m} \left( \begin{matrix} m \\ i \end{matrix}\right)S_k^{m - i}(S_n - S_k)^{i}.\)

(iii) Quando \(i\) é ímpar, segue da simetria de cada \(X_j\) que \(S_n - S_k\) também é simétrico em relação a origem e, portanto, \(\mathbb{E}\left[(S_n - S_k)^i\right] = 0\). Além disso, \(S_n - S_k\) é independente de \(S_k^{m - i}\chi_{A_k}.\) Assim, \(\mathbb{E}[S_k^{m - i}(S_n - S_k)^{i} \chi_{A_k}] = \mathbb{E}[S_k^{m - i}\chi_{A_k}]\mathbb{E}[(S_n - S_k)^{i}] = 0.\)

(iv) Quando \(i\) é par, temos \((S_n - S_k)^i \geq 0\). Além disso, \(S_k \geq r > 0\) em \(A_k\), de modo que \(S_k^{m - i}\chi_{A_k} \geq 0.\) Portanto, \(\mathbb{E}[S_k^{m - i}(S_n - S_k)^{i} \chi_{A_k}] \geq 0.\)

(v) Mantendo apenas o termo \(i=0\) e descartando os outros que se anulam ou são não-negativos, obtemos \(\mathbb{E}[S_n^{m} \chi_{A_k}] \geq \mathbb{E}[S_k^{m}\chi_{A_k}].\)

(vi) Isso nos dá que \(\mathbb{P}\left(A_k\right) = \mathbb{E}[\chi_{A_k}] \leq \frac{1}{r^{m}}\mathbb{E}[S_k^{m} \chi_{A_k}] \leq \frac{1}{r^{m}}\mathbb{E}[S_n^{m} \chi_{A_k}].\)

(vii) Somando em \(k=1, \ldots, n\) e usando que os conjuntos \(A_1, \ldots, A_n\) são disjuntos, como na demonstração acima, obtemos, finalmente, a desigualdade desejada.

  1. Sob as condições do exercício anterior, assume, ainda, que \(\mathbb{E}[e^{X_k}] < \infty,\) para todo \(k=1, \ldots, n\). Mostre que

\[ \mathbb{P}\left(\max_{1\leq k \leq n} \{S_k\} \geq r\right) \leq e^{-\lambda r}\mathbb{E}\left[e^{\lambda S_n}\right], \]

para \(r > 0\) e \(\lambda \geq 0\) quaisquer. Dica: use o resultado anterior em uma série de potências.



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