5.7. Variação ilimitada dos caminhos amostrais

Uma característica fundamental dos processos de Wiener é a de que os seus caminhos amostrais são, quase certamente, de variação ilimitada. Por esse motivo precisamos de conceitos diferentes de integração para dar sentido às equações estocásticas (as integrais de Itô e de Stratonovich). Caso contrário, usaríamos o conceito de integral de Riemann-Stieltjes.

Vejamos, abaixo, esses conceitos de variação limitada/ilimitada e de integral de Riemann-Stieltjes e o fato dos caminhos amostrais de um processo de Wiener serem, quase certamente, de variação ilimitada.

Funções de variação limitada ou ilimitada

Se \(g = g(t)\) representa a posição de um objeto ao longo do tempo, definida em um intervalo temporal \([a, b],\) com \(a < b,\) a distância entre o ponto inicial e o ponto final é simplesmente \(|g(b) - g(a)|.\) Mas, ao longo do caminho, o objeto pode ir para frente e para trás diversas vezes, como em um zig-zag. Nesse caso, podemos estimar a distância percorrida calculando

\[ \sum_{j=1}^n |g(t_j) - g(t_{j-1})| \]

para instantes de tempo \(a \leq t_0 < t_1 < \ldots < t_n \leq b.\) Caso \(x\) seja continuamente diferenciável, isso pode ser estimado por

\[ \sum_{j=1}^n |g(t_j) - g(t_{j-1})| \leq \sum_{j=1}^n |g'(\theta_j)|\Delta t_j \leq \max\{|g'|\}(b-a), \]

onde \(t_{j-1} \leq \theta_j \leq t_j\) e \(\Delta t_j = t_j - t_{j-1}.\) Observe que a estimativa à direita independe da malha de tempo, de modo que

\[ \sup_{0\leq t_0 < t_1 < \ldots t_n \leq T}\sum_{j=1}^n |g(t_j) - g(t_{j-1})| \leq \max_{[a, b]}\{|g'|\}(b-a), \]

onde o supremo é tomado em relação à todas as partições possíveis do intervalo \([a, b].\)

Na verdade, podemos ser mais precisos em relação à distância percorrida. Sendo \(g\) continuamente diferenciável, a soma

\[ \sum_{j=1}^n |g'(\theta_j)|\Delta t_j \]

é, de fato, uma soma de Riemman, cujo limite é a integral

\[ \int_a^b |g'(t)| \;\mathrm{d}t. \]

Voltando à estimativa relativa a uma partição arbitrária, caso a função seja Lipschitz contínua em \([a, b],\) com constante de Lipschitz \(L \geq 0,\) ainda podemos limitar essa quantidade:

\[ \sup_{a\leq t_0 < t_1 < \ldots t_n \leq b}\sum_{j=1}^n |g(t_j) - g(t_{j-1})| \leq L(b-a). \]

Mas podemos ter \(g\) sem ser Lipschitz contínua e, ainda assim, essa quantidade ser limitada. Mesmo certas funções descontínuas são de variação limitada. Por exemplo, \(g(t) = \chi_{[0,1]}(t)\) (vale \(1\) no intervalo \([0, 1]\) e vale \(0\) fora do intervalo) é de variação limitada. Em particular, qualquer função monótona limitada é de variação limitada. Funções de distribuição acumulada de probabilidade são monótonas não decrescentes e de variação limitada.

Essa quantidade é chamada de variação da função no intervalo \([a, b]\) e é denotada por \(V(g; a, b)\):

\[ \mathrm{V}(g; a, b) = \sup_{a\leq t_0 < t_1 < \ldots t_n \leq b}\sum_{j=1}^n |g(t_j) - g(t_{j-1})|. \]

Caso \(V(g; a, b)\) seja finito, dizemos que a função é de variação limitada, no intervalo \([a, b].\) Caso contrário, ela é dita de variação ilimitada.

Integral de Riemann-Stieltjes

Funções de variação limitada são úteis para se estender a integral de Riemann para a chamada integral de Riemann-Stieltjes:

\[ \int_a^b f(t)\;\mathrm{d}g(t) = \lim \sum_{j=1}^n f(\theta_i) (g(t_j) - g(t_{j-1})). \]

O limite é tomado em relação ao refinamento das malhas: \(\max_j\{t_j - t_{j-1}\} \rightarrow 0.\) Desde que \(g\) seja de variação limitada, é possível mostrar que o limite converge, quando \(f\) é contínua. Obtemos a integral de Riemann ao tomarmos \(g(t) = t.\)

Como a função de probabilidade acumulada \(g(x) = \mathbb{P}(X \leq x)\) de uma variável aleatória \(X\) é monónota e limitada, ela é de variação limitada, de modo que podemos representar a esperança de uma nova variável \(Y = h(X)\) através de uma integral de Riemann-Stieltjes:

\[ \mathbb{E}(h(X)) = \int_\mathbb{R} h(x) \;\mathrm{d}g(x). \]

Caso \(g\) seja diferenciável, então \(\mathrm{d}g = f\mathrm{d}x,\) onde \(f\) é a função de densidade de probabilidade. Mas a integral acima independe de \(g\) ser diferenciável ou não.

A integral de Riemann-Stieltjes possui diversas propriedades análogas à da integral de Riemann, como linearidade:

\[ \int_a^b (\lambda_1 f_1(t) + \lambda_2 f_2(t))\;\mathrm{d}g(t) = \lambda_1 \int_a^b f_1(t)\;\mathrm{d}g(t) + \lambda_2 \int_a^b f_2(t)\;\mathrm{d}g(t). \]

Também podemos concatenar integrais

\[ \int_a^b f(t)\;\mathrm{d}g(t) + \int_b^c f(t)\;\mathrm{d}g(t) = \int_a^c f(t)\;\mathrm{d}g(t), \]

independentemente da ordem de \(a, b, c.\)

Mas a integral de Riemann-Stieltjes não é positiva, i.e.

\[ \int_a^b f(t)\;\mathrm{d}g(t) \]

pode ser negativa, mesmo que \(f\geq 0.\) Para ver isso, basta considerar \(g(t) = -t.\) Isso nos impede de estimar a integral de uma função em termos da integral de outra função que a limite.

Veremos que algo parecido ocorre com a integral de Itô.

Caminhos amostrais de processos de Wiener

Vamos, agora, mostrar essa propriedade fundamental de processos de Wiener que é a de que os seus caminhos amostrais, em qualquer intervalo \([0, T],\) \(T > 0,\) são, quase certamente, de variação ilimitada.

Queremos, para isso, estimar a variação

\[ \mathrm{V}(W_t; 0, T) = \sup_{0\leq t_0 < t_1 < \ldots t_n \leq T}\sum_{j=1}^n |W_{t_j} - W_{t_{j-1}}|. \]

A ideia é considerar uma estimativa por baixo para mostrar que essa variação é ilimitada. Sejam, então, \(0 = t_0 < t_1 < \ldots < t_n = T.\) Temos

\[ \sum_{j=1}^n \left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^2 \leq \left(\max_{j=1, \ldots, n} |W_{t_j} - W_{t_{j-1}}|\right)\sum_{j=1}^n |W_{t_j} - W_{t_{j-1}}|. \]

Para efeito de contradição, vamos assumir que a malha seja uniforme e em pontos diádicos, i.e. para cada \(k\in \mathbb{N},\) tomamos \(n = 2^k,\) \(\tau = T/n = T/2^k\) e \(t_j = j\tau=j/2^k,\) para \(j = 0, \ldots, n.\)

Vamos mostrar que, quando \(k \rightarrow \infty,\) o lado esquerdo converge para um valor finito positivo e o primeiro termo do lado direito converge para zero, de modo que a variação tem que ser ilimitada.

O fato da malha ser uniforme facilita obtermos expressões mais explícitas para certas quantidades. Por outro lado, o uso dos pontos diádicos nos dá um decrescimento rápido o suficiente que nos permite usar o Lema de Borel-Cantelli. Nenhuma dessas duas condições é necessária. Há outras demonstrações mais delicadas que se aplicam a malhas arbitrárias. Mas o resultado com malhas diádicas é suficiente.

Sobre a soma dos quadrados dos incrementos

Denote a soma dos quadrados dos incrementos por

\[ S_k = \sum_{j=1}^n \left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^2, \]

lembrando que \(n = 2^k\) e \(t_j = j/2^k.\)

O valor esperado da soma dos quadrados dos incrementos pode ser escrito como

\[ \mathbb{E}\left[S_k\right] = \mathbb{E}\left[\sum_{j=1}^n \left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^2\right] = \sum_{j=1}^n \mathbb{E}\left[\left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^2\right]. \]

Observe que, usando-se a propriedade \(\mathbb{E}(W_tW_s) = \mathrm{Cov}(W_t, W_s) = \min\{t, s\},\)

\[ \begin{align*} \mathbb{E}\left[\left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^2\right] & = \mathbb{E}\left[W_{t_j}^2 - 2W_{t_j}W_{t_{j-1}} + W_{t_{j-1}}^2\right] \\ & = \mathbb{E}\left[W_{t_j}^2\right] -2\mathbb{E}\left[W_{t_j}W_{t_{j-1}}\right] + \mathbb{E}\left[W_{t_{j-1}}^2\right] \\ & = t_j - 2t_{j-1} + t_{j-1} \\ & = t_j - t_{j-1}. \end{align*} \]

Assim, obtemos a identidade

\[ \mathbb{E}\left[S_k\right] = \sum_{j=1}^n (t_j - t_{j-1}) = t_n - t_0 = T. \]

Observe que, aqui, o resultado vale para uma malha arbitrária.

Agora, estimamos a sua variância. Primeiro, temos

\[ \mathbb{E}\left[S_k^2\right] = \mathbb{E}\left[\left(\sum_{j=1}^n \left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^2\right)^2\right] = \sum_{i, j = 1}^n\mathbb{E}\left[\left(W_{t_i} - W_{t_{i-1}}\right)^2\left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^2\right] \]

Para \(i\neq j,\) como os incrementos são independentes e normais, temos

\[ \mathbb{E}\left[\left(W_{t_i} - W_{t_{i-1}}\right)^2\left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^2\right] = \mathbb{E}\left[\left(W_{t_i} - W_{t_{i-1}}\right)^2\right]\mathbb{E}\left[\left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^2\right] = (t_i - t_{i-1})(t_j - t_{j-1}). \]

Para \(i = j,\) como o incremento é normal, podemos calcular os seus momentos explicitamente, obtendo, em particular,

\[ \mathbb{E}\left[\left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^4\right] = 3(t_j - t_{j-1})^2. \]

Assim,

\[ \begin{align*} \mathbb{E}\left[\left(\sum_{j=1}^n \left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^2\right)^2\right] & = \sum_{i \neq j = 1}^n (t_i - t_{i-1})(t_j - t_{j-1}) + \sum_{j = 1}^n 3(t_j - t_{j-1})^2 \\ & = \sum_{i, j = 1}^n (t_i - t_{i-1})(t_j - t_{j-1}) + 2\sum_{j = 1}^n (t_j - t_{j-1})^2. \end{align*} \]

Os termos do primeiro somatório são separáveis em \(i\) e \(j,\) de modo que

\[ \begin{align*} \mathbb{E}\left[\left(\sum_{j=1}^n \left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^2\right)^2\right] & = \left(\sum_{i = 1}^n (t_i - t_{i-1})\right)\left(\sum_{j = 1}^n (t_j - t_{j-1})\right) + 2\sum_{j = 1}^n (t_j - t_{j-1})^2 \\ & = T^2 + 2\sum_{j = 1}^n (t_j - t_{j-1})^2. \end{align*} \]

Portanto, a variância é dada por

\[ \begin{align*} \mathrm{Var}\left(\sum_{j=1}^n \left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^2\right) & = \mathbb{E}\left[\left(\sum_{j=1}^n \left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^2\right)^2\right] - \mathbb{E}\left[\sum_{j=1}^n \left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^2\right]^2 \\ & = T^2 + 2\sum_{j = 1}^n (t_j - t_{j-1})^2 - T^2 \\ & = 2\sum_{j = 1}^n (t_j - t_{j-1})^2. \end{align*} \]

Podemos estimar

\[ \mathrm{Var}\left(\sum_{j=1}^n \left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^2\right) \leq 2T\max_{j=1,\ldots, n}\{(t_j - t_{j-1})\}. \]

Novamente, essa estimativa vale para uma malha arbitrária. No caso da malha uniforme, com \(\tau = 1/2^k,\) temos, mais precisamente,

\[ \mathrm{Var}\left(\sum_{j=1}^n \left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^2\right) \leq 2T\tau = \frac{T}{2^{k-1}}. \]

No limite do refinamento da malha, temos

\[ \mathbb{E}[S_k] = T, \quad \mathrm{Var}(S_k) \rightarrow 0, \]

portanto

\[ S_k \rightarrow T, \]

quando \(k\rightarrow \infty.\) Mais importante é a estimativa que segue da desigualdade de Chebyshev,

\[ \mathbb{P}\left(|S_k - T| \geq \varepsilon \right) \leq \mathbb{E}\left[\frac{(S_k - T)^2}{\varepsilon^2}\right] \leq \frac{1}{\varepsilon^2}\frac{T}{2^{k-1}}, \]

para \(\varepsilon>0\) arbitrário. Com isso,

\[ \sum_{k = 1}^\infty \mathbb{P}\left(|S_{k} - T| \geq \varepsilon \right) \leq \frac{2T}{\varepsilon^2} < \infty. \]

Portanto, pelo Lema de Borel-Cantelli,

\[ \mathbb{P}\left(\limsup_{k\rightarrow \infty} |S_k - T| \geq \varepsilon\right) = 0. \]

Como \(\varepsilon > 0\) é arbitrário, segue que

\[ \mathbb{P}\left( \limsup_{k\rightarrow \infty} |S_k - T| > 0 \right) = 0. \]

Escrito de outra maneira,

\[ \mathbb{P}\left( \lim_{k\rightarrow \infty} |S_k - T| = 0 \right) = 1, \]

ou seja,

\[ S_{k} \rightarrow T, \]

quase certamente.

Sobre o máximo dos incrementos

Por definição, quase todos os caminhos amostrais de um processo de Wiener são contínuos. Como o intervalo \([0, T]\) é fechado e limitado, segue, que, para quase todo \(\omega,\) o caminho amostral \(t \mapsto W_t(\omega)\) é uniformemente contínuo em \([0, T].\)

Assim, dado \(\varepsilon > 0,\) existe \(\delta > 0\) tal que

\[ |W_s(\omega) - W_t(\omega)| < \varepsilon, \qquad \forall t, s\in [0, T), \;|t - s| \leq \delta. \]

No caso da malha escolhida, temos, para \(\varepsilon > 0\) e \(k \geq \ln (1/\delta),\) que \(t_j - t_{j-1} = 1/n = 1/2^k \leq \delta\) e, portanto,

\[ \max_{j=1, \ldots, n} |W_{t_j} - W_{t_{j-1}}| \leq \delta. \]

Dessa forma, vemos que

\[ \max_{j=1, \ldots, n} |W_{t_j} - W_{t_{j-1}}| \rightarrow 0, \qquad k \rightarrow \infty, \]

para quase todo caminho amostral.

Variação ilimitada

Voltemos, agora, à identidade

\[ \sum_{j=1}^n \left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^2 \leq \left(\max_{j=1, \ldots, n} |W_{t_j} - W_{t_{j-1}}|\right)\sum_{j=1}^n |W_{t_j} - W_{t_{j-1}}|. \]

Obtivemos que, para quase todo caminho amostral, quando a malha é refinada, ao limite \(k\rightarrow \infty,\) o termo do lado esquerdo converge para \(T,\) enquanto que o primeiro termo do lado direito converge para zero. Portanto, devemos ter

\[ \sum_{j=1}^n |W_{t_j} - W_{t_{j-1}}| \geq \frac{\sum_{j=1}^n \left(W_{t_j} - W_{t_{j-1}}\right)^2}{\max_{j=1, \ldots, n} |W_{t_j} - W_{t_{j-1}}|} \rightarrow \infty, \qquad k \rightarrow \infty. \]

Isso implica, em particular, que, para quase todo caminho amostral, a variação do caminho é ilimitada, i.e.

\[ \mathbb{P}\left(\mathrm{V}(W_t; 0, T) = \infty\right) = 1. \]

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