7.2. Exemplos básicos

Vamos considerar alguns exemplos básicos de equações diferenciais aleatórias.

Exemplo linear autônomo

Começemos com o problema de valor inicial

\[ \begin{cases} \displaystyle \frac{\mathrm{d} X_t}{\mathrm{d} t} = A X_t, & t \geq 0, \\ X_t|_{t = 0} = X_0, \end{cases} \]

onde \(X_0\) e \(A\) são variáveis aleatórias reais. Definimos

\[ X_t = X_0e^{tA}, \qquad t \geq 0. \]

Como \(f(t, a, c) = ce^{ta}\) é uma função contínua de \(\mathbb{R}^3\) em \(\mathbb{R}\), segue que \(X_t\) está bem definido e é uma variável aleatória. Além disso, para quase todo \(\omega\), temos \(A(\omega), X_0(\omega) \in \mathbb{R}\) e, com isso, temos os caminhos amostrais

\[ X_t(\omega) = X_0(\omega) e^{A(\omega)t}, \qquad \forall t\geq 0, \]

que são (infinitamente) diferenciáveis em \(t\) e são soluções da equação diferencial ordinária

\[ \begin{cases} \displaystyle \frac{\mathrm{d} X_t(\omega)}{\mathrm{d} t} = A(\omega) X_t(\omega), & t \geq 0, \\ X_t(\omega)|_{t = 0} = X_0(\omega). \end{cases} \]

Logo, \(\{X_t\}_{t\geq 0}\) é um processo que é uma solução por caminhos da equação diferencial aleatória acima, com a condição inicial desejada.

Exemplo linear não autônomo com um processo como parâmetro

Vejamos, agora, o problema de valor inicial

\[ \begin{cases} \displaystyle \frac{\mathrm{d} X_t}{\mathrm{d} t} = A_t X_t, & t \geq 0, \\ X_t|_{t = 0} = X_0, \end{cases} \]

onde \(X_0\) é uma variável aleatória real e \(\{A_t\}_{t \geq 0}\) é um processo real. Definimos

\[ X_t = X_0e^{\int_0^t A_s \;\mathrm{d}s}, \qquad t \geq 0. \]

Assumimos que \(t \mapsto A_t(\omega)\) é contínuo quase certamente, de maneira que os caminhos amostrais

\[ X_t(\omega) = X_0(\omega) e^{\int_0^t A_s(\omega) \;\mathrm{d}s}, \qquad \forall t\geq 0, \]

são diferenciáveis em \(t\) e são soluções da equação diferencial ordinária

\[ \begin{cases} \displaystyle \frac{\mathrm{d} X_t(\omega)}{\mathrm{d} t} = A_t(\omega) X_t(\omega), & t \geq 0, \\ X_t(\omega)|_{t = 0} = X_0(\omega). \end{cases} \]

Logo, \(\{X_t\}_{t\geq 0}\) é um processo que é uma solução por caminhos da equação diferencial aleatória acima, com a condição inicial desejada.

Exemplo não linear com existência local

Considere

\[ \begin{cases} \displaystyle \frac{\mathrm{d} X_t}{\mathrm{d} t} = A X_t^2, & t \geq 0, \\ X_0 = 1, \end{cases} \]

onde \(A\) é uma variável aleatória com distribuição beta, por exemplo.

A distribuição beta está concentrada no intervalo \((0, 1)\), ou seja, para quase todo \(\omega\), temos \(0 < A(\omega) < 1\). Assim, para quase todo \(\omega\), a equação diferencial ordinária

\[ \begin{cases} \displaystyle \frac{\mathrm{d} x(t)}{\mathrm{d} t} = A(\omega) x(t)^2, & t \geq 0, \\ x(0) = 1, \end{cases} \]

tem uma solução única

\[ x(t) = \frac{1}{1 - A(\omega)t}, \qquad 0 \leq t < \frac{1}{A(\omega)}. \]

Como

\[ \frac{1}{A(\omega)} > 1, \]

para quase todo \(\omega\), podemos definir, para todo \(0 \leq t < 1\), o processo aleatório \(\{X_t\}_{t\in [0, 1)}\) por

\[ X_t = \frac{1}{1 - At}, \]

cujos caminhos amostrais são

\[ X_t(\omega) = \frac{1}{1 - A(\omega)t}, \qquad 0 \leq t < 1. \]

Observe que \((t, a) \mapsto 1/(1 - at)\) é uma função contínua em \((t,a) \in [0, 1)\times [0, 1]\). Como \(A\) tem suporte em \([0, 1]\), então essa função é Lebesgue-mensurável em \(\mathbb{R}\). Assim, \(X_t\) é uma variável aleatória bem definida.

A função de distribuição acumulada de cada \(X_t\) é dada por

\[ \mathbb{P}(X_t \leq x) = \mathbb{P}\left( \frac{1}{1 - A} \leq x\right) = \mathbb{P}\left( A \leq \frac{x - 1}{x}\right), \qquad 0 < x < 1, \]

com \(\mathbb{P}(X_t \leq x) = 0\), para \(x\leq 0\) e \(\mathbb{P}(X_t \leq x) = 1\), para \(x\geq 1\).

A distribuição conjunta \(\mathbb{P}(X_{t_1} \leq x_1, \ldots, X_{t_n} \leq x_n)\) também pode ser obtida de forma semelhante.

Não existência

Vamos ver um exemplo clássico de não existência de solução por caminhos de uma equação diferencial aleatória.

Considere o problema de valor inicial

\[ \begin{cases} \displaystyle \frac{\mathrm{d} X_t}{\mathrm{d} t} = A X_t^2, & t \geq 0 \\ X_0 = 1. \end{cases} \]

Mas, dessa vez, assumimos que \(A\) seja uma variável aleatória com distribuição sem suporte limitado, digamos normal ou exponencial, etc.. Isso significa que \(A(\omega)\) não é limitado quase sempre. Com isso, os caminhos amostrais

\[ x(t) = \frac{1}{1 - A(\omega)t}, \qquad 0 \leq t < \frac{1}{A(\omega)}, \]

estão definidos em intervalos arbitrariamente pequenos. Isso nos impede de definir um processo \(\{X_t\}_{t \in [0, \varepsilon)}\) para todos os caminhos, por menor que seja \(\varepsilon > 0\). Ou seja, não existe solução por caminhos dessa equação.

Múltiplas soluções e não solução

Agora, considere o problema de valor inicial

\[ \begin{cases} \displaystyle \frac{\mathrm{d} X_t}{\mathrm{d} t} = 3X_t^{2/3}, & t \geq 0 \\ X_0 = 0. \end{cases} \]

Aqui, devemos especificar onde "mora" \(X_0\). Podemos tomar \(X_0 = 0\) em \(\Omega = \mathbb{R}\), com \(\mathcal{A}\) sendo, por exemplo, a \(\sigma\)-álgebra de Lebesgue.

Naturalmente, temos a solução trivial \(X_t^{(0)} = 0\), \(\forall t \geq 0\). Também temos

\[ X_t^{(1)}(\omega) = t^3, \qquad t \geq 0 \]

como solução.

Agora, para qualquer conjunto \(E\subset \Omega\), temos, ainda que \(\{X_t^{(E)}\}_{t\geq 0}\) definido através dos caminhos

\[ X_t^{(E)}(\omega) = \begin{cases} t^3, &\omega \in E, \\ 0, & \omega \notin E, \end{cases} \]

é tal que cada caminho \(X_t^{(E)}(\omega)\) satisfaz a equação diferencial ordinária \(x' = 3x^{2/3}\). Se \(E\) for mensurável, então \(\{X_t^{(E)}\}_{t \geq 0}\) é, de fato, um processo que satisfaz a condição inicial \(X_0^{(E)} = 0\) e é uma solução por caminhos da equação diferencial aleatória.

No entanto, se \(E\) não for mensurável, então os caminhos satisfazem a equação diferencial ordinária mas \(\{X_t^{(E)}\}_{t \geq 0}\) não define um processo.

Outros tipos de solução

Outros tipos de solução podem ser obtidas relaxando-se o sentido de convergência do limite

\[ \frac{\mathrm{d}X_t}{\mathrm{d}t} = \lim_{\tau \rightarrow 0} \frac{X_{t+\tau} - X_t}{\tau}. \]

No caso acima, de soluções por caminhos, o limite vale quase certamente, i.e.

\[ \mathbb{P}\left(\exists \frac{\mathrm{d}X_t}{\mathrm{d}t} = \lim_{\tau \rightarrow 0} \frac{X_{t+\tau} - X_t}{\tau} = f(t, X_t, Y_t) \right) = 1. \]

Mas, em princípio, a noção de derivada de um processo pode ser relaxada para convergência em probabilidade, convergência em distribuição, convergência em média-quadrática, convergência em média \(p\geq 1\), etc. A dificuldade é obtermos condições em \(f\) e em \(Y_t\), mais fracas, que garantam a existência de soluções da equação diferencial aleatória nesse sentido (também) mais fraco que convergência quase certamente.

Uma sentido bastante utilizado é o de solução no sentido de média quadrática, em que existe um processo \(\{\mathrm{d}X_t/\mathrm{d}t\}_{t \in [0, T)}\) tal que

\[ \mathbb{E}\left( \left| \frac{X_{t+\tau} - X_t}{\tau} - \frac{\mathrm{d}X_t}{\mathrm{d}t}\right|\right) \rightarrow 0, \quad \tau \rightarrow 0. \]

Last modified: May 03, 2024. Built with Franklin.jl, using the Book Template.